Se a qualidade de uma obra de arte depende do contexto e está nos
olhos de quem a vê, argumenta o escritor inglês James Miller (
William Shimell) no começo de
Cópia Fiel (
Copie Conforme,
2010), então uma falsificação pode ter a mesma validade do original.
É como a imagem da Coca-Cola reinventada pela pop art, diz ele, que
está na Toscana para divulgar o seu livro, intitulado justamente
Cópia Fiel.
Em seu primeiro filme rodado fora do Irã, o mais importante cineasta do país,
Abbas Kiarostami, parte desse princípio de Miller para legitimar a sua homenagem a
Viagem à Itália. Como no clássico de 1954 de
Roberto Rosselini,
temos o que normalmente seria uma pequena questão burguesa - os
problemas de relacionamento de um casal - amplificada pela concha
acústica que é a história da arte europeia. Uma obra depende de seu
contexto: entre os muros da Itália, as pequenezas da vida a dois se
tornam material de um drama maior.
James Miller precisa voltar para a Inglaterra, mas antes aceita de Elle (
Juliette Binoche),
uma francesa dona de galeria que há anos vive na Itália com seu
filho, um convite para passear pelas ruazinhas da comuna de Lucignano.
Passando por um café, os dois são confundidos como marido e mulher,
e por brincadeira passam a encenar esses papéis. O momento dessa virada
é essencial: James e Elle por uma viela antes deserta, mas que de
repente se enche de varais e mulheres e barulhos de bebês. É como se
atravessassem um portal para o neorrealismo.
Kiarostami diz que cada um deve interpretar a obra como quiser, mas é
inegável que duas obsessões de sua cinematografia iraniana seguem
preservadas aqui: as mulheres e o tempo. Em filmes como
Gosto de Cereja
(1997), a obra que transformou Kiarostami em grife e o cinema iraniano
em moda, percebe-se mesmo no mais seco monte de terra o acúmulo do
tempo. O tempo, inscrito na paisagem, é que molda os homens. Mas com
as mulheres é diferente. Elas vivem no Irã em uma espécie de estado
de suspensão, numa semiclandestinidade, e sobre elas o tempo não
parece agir. É uma condição trágica, no fundo, e Kiarostami tem
passado anos fazendo filmes com close-ups de mulheres para tentar
socorrê-las.
Na Europa de
Viagem à Itália e de
Cópia Fiel, o
secularismo permite um acúmulo do tempo distinto do iraniano. É o
tempo, por exemplo, que cerca James à esquerda e à direita na cena da
foto com a noiva. Lucignano surge constantemente em espelhos, janelas,
romanceada por velas, por não dá pra negar a História. Mas
enquanto James Miller filosofa contra o "eterno" da arte, contra a
mistificação, porque afinal logo retornará para a Inglaterra, a
francesa Elle está sofrendo no rosto o peso dos anos mal vividos. Fora
do Irã, é sobre as mulheres que age o tempo de Kiarostami.
E se o diretor apega-se ao close-up de Juliette Binoche, que nunca
esteve tão bonita e tão vulnerável, é para entender por que tanto sorri
essa sua Mona Lisa.
Fonte: http://omelete.uol.com.br/cinema/critica-copia-fiel/